Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 10/1/96, a "A" - Sociedade Portuguesa de Locação Financeira, S.A., intentou acção declarativa com processo sumário contra a B - Comércio de Automóveis, S.A., contra a Companhia de Seguros C, S.A., e contra D, pedindo a condenação solidária da 1ª Ré e do 3º Réu a devolver-lhe o veículo automóvel de marca Honda, modelo CRB e matrícula LX, objecto de contrato de locação financeira (nº30.829) celebrado em 20/10/92, e a das duas primeiras demandadas, a primeira com base nesse mesmo contrato, e a segunda com fundamento em contrato de seguro de caução directa em que as mesmas foram partes e de que a A. é beneficiária, a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de 948.646$00 de rendas vencidas a partir de 10/8/94, no total de 500.784$00, e respectivo IVA, rendas vincendas, e juros de mora vencidos, acrescidos dos juros de mora vincendos, ou, subsidiariamente, 686.839$00 de rendas vencidas e respectivo IVA, indemnização contratual e juros de mora vencidos, acrescidos dos juros de mora vincendos.
Essa acção foi distribuída à 2ª Secção do 7º Juízo (depois Vara) Cível a comarca de Lisboa, e contestada pelas duas primeiras Rés.
A 1ª Ré, que litiga com benefício de apoio judiciário, excepcionou abuso de direito por parte da A., em vista de acordo entre ambas no sentido de accionamento, apenas, do seguro-caução em caso de incumprimento do contrato de locação financeira, e, com esse mesmo fundamento, enriquecimento sem causa.
Em reconvenção (1), pediu a condenação da A. a accionar o seguro-caução de que é beneficiária.
A Ré seguradora excepcionou, por sua vez, em síntese, configurar-se no contrato de locação financeira aludido fraude à lei, em vista, nomeadamente, do art.2º do DL 171/79, de 6/6, que determinava que " a locação financeira de coisas móveis respeita sempre a bens de equipamento", e a nulidade, nessa base, desse contrato, por força dos arts.280º e 281º C.Civ.
Em defesa por impugnação motivada (exceptio rei non sic sed aliter gestae), opôs, com igualmente desenvolvidos fundamentos, e invocação, nomeadamente, dos protocolos relativos a esse seguro, que o objecto do seguro-caução accionado eram as prestações a pagar pelo adquirente do veículo em regime de aluguer de longa duração ( ALD ).
Em reconvenção deduzida para a hipótese de procedência da acção, e fundada em inobservância, por parte da demandante, de obrigações consignadas nos artigos 10º e 14º das Condições Gerais da apólice do seguro arguido, nomeadamente, de participação oportuna do sinistro, e pelos prejuízos causados pela não resolução do contrato de locação financeira logo a seguir ao não pagamento das rendas pela 1ª Ré, permitindo que o veículo continuasse, apesar disso, a sofrer deterioração pelo uso e consentindo que aquela Ré se locupletasse com as rendas do ALD, a seguradora demandada pediu, por último, a condenação da demandante a pagar-lhe indemnização a liquidar em execução de sentença, equivalente, no mínimo, ao montante pelo qual viesse a responder por força da apólice.
Houve réplica.
Lavrado despacho unitário de saneamento e condensação, veio, após julgamento, a ser proferida em 5/1/2004 - isto é, perto de 8 anos depois de proposta a acção - sentença que julgou as reconvenções improcedentes, absolvendo a A. dos pedidos reconvencionais, e procedente e provada a acção, pelo que condenou a 1ª Ré e o 3º Réu a entregar à A. o veículo aludido e as 1ª e 2ª Rés a pagar à mesma o montante total de 686.839$00 acrescido dos juros que se vencerem sobre 569.664$ 00 desde 10/1/96 até integral pagamento, à taxa legal sucessivamente vigente.
Ambas essas Rés apelaram dessa decisão, a 1ª, sem êxito. O recurso da 2ª obteve provimento parcial.
Só a 1ª Ré - B - interpôs recurso de revista dessa decisão (ARL com data de 20/1/2005 e 32 páginas).
Nas 35 conclusões da alegação respectiva, - e nem vale a pena recordar a exigência de síntese expressa no nº1º do art.690º CPC -, a ora recorrente coloca, uma vez mais, as seguintes questões - cfr. arts.713º, nº2º, e 726º CPC:
a) - natureza e efeitos do seguro de caução directa;
b) - abuso de direito;
c) - enriquecimento sem causa.
Nem contra-alegação houve.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
A matéria de facto a ter em atenção é a fixada pelas instâncias, para que se remete em obediência ao disposto nos arts.713º, nº6º, e 726º, CPC.
As questões ora uma vez mais sub judicio foram já exaustivamente tratadas, muitas e muitas vezes, neste Tribunal. Vai, por isso, tentar-se encurtar razões. Assim:
1ª questão: natureza e efeitos do seguro-caução:
No acórdão sob recurso discorre-se a este respeito, linearmente, assim:
Celebrado com o devedor da obrigação a garantir ou com o contragarante a favor do respectivo credor (art.9º, nº2º, do DL 183/88, de 24/5), o seguro-caução é um dos casos em que o contrato de seguro "( ... ) assume a feição típica dum contrato a favor de terceiro " (2).
Diversamente, o contrato de garantia autónoma é celebrado entre o garante e o credor do contrato base - não, ao contrário do que sucede no seguro-caução, o devedor nesse contrato - e o beneficiário da garantia é uma das partes no contrato de garantia e não um terceiro em relação a esse contrato.
A esta diferença estrutural acresce a de conteúdo, que determina que enquanto o contrato de garantia autónoma é um contrato unilateral, gratuito, e consensual, o de seguro-caução é bilateral ou sinalagmático, oneroso e formal, constituindo a sua redução a escrito formalidade ad substantiam.
O acórdão em recurso regista ainda outras diferenças no regime desses dois distintos contratos - cfr. respectivas pág.23 e 24 a fls.712 e 713 dos autos (3) .
Quanto, então, ao seguro-caução:
Por definição coberto por essa forma, em garantia deste tipo, o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações em causa (art.6º, nº1º, do DL 183/88, de 24/5) (4), o sinistro consiste na frustração da expectativa de pagamento.
A natureza fidejussória e função normais do seguro-caução aproximam-no da fiança ( v. nº 2º do art. 623º C.Civ.) ; o que de imediato recorda o disposto nos arts. 641º e 644º C.Civ. (v. também art. 441º C.Com.).
O carácter indemnizatório da garantia tem, no entanto, conduzido a, contrariando o entendimento tradicional (5), sustentar a sua autonomia (6) . De todo o modo:
Para que o seguro-caução directa em referência nestes autos assumisse na realidade a natureza de garantia autónoma, automática, ou à primeira solicitação ou interpelação, que o acórdão sob recurso negou, mas a recorrente insiste em atribuir-lhe, seria necessário que isso mesmo decorresse do clausulado na apólice respectiva ; e é tal que não se mostra verificar-se efectivamente neste caso.
Designadamente, não se vê que realmente importem a efectiva estipulação de cláusula de pagamento à primeira solicitação os nºs 4º (referido à recusa injustificada de pagamento pelo tomador quando para tanto interpelado) e 5º (que diz constituído então o direito do beneficiário à indemnização pela seguradora, a satisfazer (7) no prazo de 45 dias a contar da data da reclamação) do artigo 11º das Condições Gerais da apólice.
Não se mostra, na verdade, assumido no título da garantia em questão, que é a apólice ajuizada, compromisso algum de pagamento à primeira interpelação (8).
Não há nela, prima facie, ao menos, qualquer declaração que comporte a proibição da invocação pela beneficiária das excepções, fundadas no contrato-base, que a garantida possa fazer valer.
Assim sendo, não bastaria a mera interpelação da garante para que esta se achasse obrigada a cumprir, só lhe sendo exigível que pagasse mediante comprovação de estarem efectivamente preenchidos os pressupostos da sua responsabilidade (no caso, a recusa injustificada de pagamento pela devedora). No entanto:
A al.b) do artigo 7º do protocolo celebrado entre as Rés B e C com data de 15/11/91, a fls.107 dos autos, reza assim:
"Com os documentos referidos na alínea anterior, a seguradora pagará, à primeira interpelação do beneficiário, o montante indemnizatório".
Uma vez admitida a interdependência do contrato de seguro e desse protocolo enquanto contrato-quadro de que constituiria aplicação, subsiste, em tal base, que, em caso, como o vertente, de lacuna ou silêncio do negócio subsequente sobre este ponto, seria, ao fim e ao cabo, de aplicar a cláusula correspondente do contrato-quadro, inicial, "dada a interrelação entre eles na prossecução do mesmo fim comum" (9) .
Atribuída aos contratos de seguro-caução directa celebrados pelas ora recorrentes a natureza de garantia autónoma ou à primeira solicitação (10), a Ré seguradora achar-se-ia obrigada a satisfazer de imediato o reclamado pela locadora financeira A., independentemente de averiguação sobre se tal era, ou não, efectivamente devido.
A seguradora obrigada, em tais termos, em garantia do cumprimento de indicadas obrigações, deveria satisfazê-las de imediato logo que a beneficiária o exigisse, não podendo opor-lhe objecções algumas.
Trata-se, neste entendimento, "de garantia documentária - a funcionar contra a entrega dos documentos elencados -, garantia não pura, portanto, mas, em todo o caso, uma garantia autónoma, paga à primeira solicitação" (11) .
Seguro, em qualquer caso, é que, só com o consentimento do credor se podem transmitir débitos - art. 595º C.Civ.
Por isso, quem se obriga a pagar é, em princípio, sempre devedor: mesmo que um terceiro garanta o cumprimento.
O contrato de seguro-caução de que a locadora financeira ora recorrida é beneficiária não determinou modificação subjectiva alguma da relação jurídica estabelecida entre ela e a locatária recorrente.
Não se está, de facto, perante seguro semelhante ao de responsabilidade civil automóvel, em que o segurado transfira para a seguradora a sua responsabilidade, respondendo esta directamente perante o lesado, sem, por via de regra, poder exercer o direito de regresso (v., neste caso, a cl. 14ª das Condições Gerais da apólice).
A função do seguro-caução é a de indemnizar quem na respectiva apólice figure como beneficiário, e não a de exonerar (liberar) o devedor inadimplente (12).
Fim ou função da prestação dessa garantia atribuir, em reforço da solvência do devedor, maior segurança ao crédito do beneficiário, não constitui instrumento de exclusão da responsabilidade daquele, tomador do seguro: a seguradora não se substitui - tão só se junta - ao devedor em falta.
Assim, a obrigação de indemnizar, por parte da C, por força do contrato de seguro-caução - garantia adicional exigida com vista a acautelar eventual falha da locatária no cumprimento das suas obrigações - não afasta a obrigação de pagamento da B, por força do contrato de locação financeira.
Como, por fim, bem se sabe, nas obrigações comerciais os co-obrigados são solidários (art. 100º C.Com .), com o efeito previsto no nº1º do art. 519º C.Civ.
2ª questão: abuso de direito:
Esta questão e a que se segue, foram suscitadas com base em acordo que não se provou (13), e de que, aliás, se não cuidara de precisar a data e lugar.
Destarte não sabido, sequer, quando, como e onde terá tido lugar um tal convénio, não ficou dele rasto ou traço que possa ter-se em consideração.
A excepção da proibição de conduta contraditória ínsita no art. 334º C.Civ. é agora fundada em expectativa assente no facto de ser do conhecimento da locadora financeira que o veículo aludido iria ser objecto de aluguer de longa duração.
Mas essa é, com evidência, base por demais insuficiente para justificar o estado de confiança objectivamente fundado que aquela proibição protege (14) ; tanto assim sendo que se houve por bem adiantar o falado acordo, afinal não provado.
3ª questão: enriquecimento sem causa
Relativa igualmente ao primeiro dos pedidos formulados contra esta recorrente, de devolução do veículo automóvel aludido, esta última questão desmerece, do mesmo modo, demorada contemplação.
Uma tal proposição briga, na verdade, frontalmente, com o estipulado nos arts. 15º, nº 1º, relativo ao termo do contrato, e 16º das Condições Gerais do contrato de locação financeira (v. fls. 13 e vº destes autos), este último, por sua vez, dispondo para o caso de resolução desse contrato (15) .
Como observado no acórdão recorrido, que cita assim, jurisprudência deste Tribunal, como decorre dos arts. 289º e 433º C.Civ. a restituição do veículo é, aliás, uma consequência natural da resolução desse contrato, tendo, pois, causa legalmente bem definida.
Nada tendo o art. 668º CPC que ver com eventual erro de julgamento, a invocação, na última das 35 conclusões da aliás extensa alegação desta recorrente (16) , sem apoio algum no texto dessa alegação, da previsão das als.b), c), d), e e) do seu nº1º releva, em final girândola, do puro despropósito.
Da já assim dita "saga da B", - que litiga com apoio judiciário -, e, ao que se tem lido noutros processos -, são cerca de 1.500 acções, a impor, porventura, outro foro, há, até, notícia no Diário da AR nº 41-Série B, de 3/5/2003, relativa a queixa apresentada na Assembleia da República à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias por uma Comissão dos muitos que em tal imbróglio se acham lesados.
Quousque tandem?
Estar-se-ia em crer ser já tempo de acabar-se com recursos deste jaez (17) para este Tribunal - em que se vai ao ponto de insistir em referência a documentos de que não foi admitida a junção por decisão com trânsito em julgado fundada no art.706º, nº1º, CPC - v. fls.826-12), ss, e fls.850- 155, ss.
Desnecessárias mais dilatadas considerações, alcança-se a decisão que segue:
Nega-se a revista.
Custas pela recorrente - sempre sem prejuízo do benefício de que goza nesse âmbito.
Lisboa, 22 de Setembro de 2005
Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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