Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
"A" - Materiais de Construção Civil, L.da
Intentou contra B, e C
Acção declarativa de condenação, sob a forma sumária (depois ordinária, em face do pedido reconvencional),
Pedindo
A sua condenação a pagarem-lhe a quantia de 1.091.496$00, a título de capital, 584.194$00, de juros vencidos até 23.4.99 e 127.341$00 de juros vencidos desde esta última data até ao presente, tudo no montante de 1.803.3031$00, de fornecimentos que fez à sociedade D, L.da, por os RR. sócios liquidatários desta, não terem prestado a caução a que alude o art. 154.º, 3 do CSC, na data da escritura de dissolução.
Os RR. contestaram separadamente, por excepção e por impugnação, deduzindo pedido reconvencional por fornecimento de areão, pedindo a respectiva condenação da A.
A A. respondeu.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, julgando improcedente quer a acção quer a reconvenção.
Inconformada, a A. interpôs, sem êxito, recurso de apelação.
Novamente inconformada, interpôs recurso de revista, terminando as alegações com as seguintes
Conclusões
1.ª O Supremo Tribunal de Justiça tem o poder de mandar ampliar a matéria de facto, em ordem a constituir base sólida para a boa decisão da causa, nos termos do artigo 729.º 3 do C PC.
2.ª In casu é justificado que o faça, na medida em que a recorrente intentou a presente acção, pedindo a condenação dos recorridos, alegando inter alia que os mesmos, nas suas funções de gerentes/liquidatários da sociedade, agiram com dolo, posto que, previamente ao acto de dissolução, alienaram o património da sociedade, frustrando, assim, o direito de crédito da recorrente.
3.ª Entenderam as instâncias que para a efectivação da responsabilidade dos recorridos, necessário se tomaria que, posteriormente à dissolução, tivesse havido partilha de bens, entre os sócios, o que não era o caso, já que no ano da dissolução a sociedade não exercia actividade.
4.ª Porém, não tiveram em conta a força probatória de certidão do registo predial junta pela recorrente e na qual consta que a sociedade dissolvida era, meses antes à data da dissolução, proprietária de um prédio no qual construíram - com dinheiro dos credores, incluindo a recorrente - diversas fracções que venderam a terceiros, não se sabendo, porém, o destino final do dinheiro.
5.ª Mas, face a todo o enquadramento fáctico da situação, é de extrair, nos termos do artigo 351.º do CCIV, a presunção judicial de que os sócios gerentes (recorridos) partilharam o dinheiro proveniente das vendas, sabido que o negócio imobiliário na Madeira é uma actividade altamente lucrativa.
6.ª Acresce que, nos termos do artigo 78.º, 1 do CSC, os recorridos respondem solidária e ilimitadamente perante a recorrente, já que foi por sua culpa que o património da sociedade se tomou insuficiente (inexistente), o que resulta do facto de todo o património imobiliário ter sido vendido pelos recorridos, sem que fosse efectuado o pagamento do crédito da recorrente e doutros - facto que os recorridos, aliás, não colocam em causa.
7.ª Para a imputação da responsabilidade que ora se efectiva, é indiferente o momento em que os recorridos procederam à partilha dos bens (fracções de um imóvel), pois o que importa é que os direitos dos credores saiam prejudicados pelos actos dos responsáveis (nexo de causalidade entre o dano e o acto), seja, anterior, simultâneo ou posterior à formalidade que é a escritura da dissolução. Aliás,
8.ª Se fosse verdade que a sociedade perdeu o seu activo na actividade, então os recorridos, enquanto responsáveis pela sociedade, tinham o dever de apresentá-la à falência, uma vez que se dava uma superioridade do passivo sobre o activo liquido, nos termos do artigo 6.º do CPEREF .
9.ª O dolo dos recorridos é perceptível quando se pondera que, enquanto liquidatários, não acautelaram - o que, aliás, nunca pretenderam - os direitos dos credores, violando, consequentemente os deveres consignados nos artigos 149.º n.º 1 e 2, 153.º n.º 2, 154.º, n.º 1 e 155.º n.º1 todos do CSC, o que se afere quando, sabendo da existência das dívidas, declararam, perante o notário, não haver bens a partilhar e que se alguma dívida fiscal houvesse por eles seria assumida.
10.º A dissolução, tal como foi efectuada, sem pagamento aos credores, visou apenas - e tão só - evitar que estes lançassem mão dos meios de ressarcimento do seu crédito, o que, além do mais, configura um verdadeiro e clamoroso abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do CCIV.
11.º Julgamos, sábios juízes conselheiros, que a questão é, essencialmente, de direito, e que, por isso, haverão de aplicá-lo de forma a que se não permitam situações de autêntica fraude à lei como é, nitidamente, o caso sub judice.
12.º Por todo o exposto a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 351.º do CCIV , 78.º, 80.º, 149.º n.º 1 e 2, 153.º n.º 2, 154.º, n.º1 e 155.º n.º1 todos do CSC, 6.º do CPEREF e 334.º do CCIV , devendo estas normas serem interpretadas e aplicadas no sentido expresso nestas conclusões.
Termina, pedindo se conceda a revista e se revogue a dupla conforme decisão das instâncias.
Não foram oferecidas contra alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Matéria de facto provada:
1. A A. dedica-se ao comércio de materiais de construção civil, sendo que, no âmbito dessa actividade, forneceu à sociedade D, Ld.ª, da qual os RR. são os únicos sócios, diversos materiais de construção, cujo montante ascende a 1.091.496$00 - Alínea A);
2. Como aquela sociedade não pagou nos prazos convencionados, a A. intentou contra ela a respectiva acção de cobrança - Alínea B);
3. Por sentença proferida a 23.04.1999, pelo 2° Juízo Cível da comarca do Funchal, foi julgada procedente a acção e consequentemente condenada a sociedade D, Ld.ª a pagar à aqui A. a quantia de 1.091.496$00, a que acresceram juros até àquela data, no montante de 584.194$00 -Alínea C);
4. Foi publicado no Diário de Notícias do Funchal, edição de 22 de Abril de 1999, o anúncio de liquidação daquela sociedade - Alínea D);
5. A escritura de dissolução da sociedade D, Ld.ª é datada de 30 de Dezembro de 1998 e nela consta que:
. B e Pedro Nunes Silva são os únicos sócios da referida sociedade;
. Que o capital social, integralmente realizado, é de quatrocentos e vinte mil escudos;
. Que deliberaram e formalizaram aqueles sócios a dissolução da sociedade, acto de que resulta a extinção da mesma, porquanto nenhuns bens há a liquidar ou partilhar, tendo-se perdido o próprio capital na actividade social - al. E);
6. Os liquidatários (sócios) não prestaram a caução a que alude o art. 154.º, 3 do CSC - al. F);
7. A dissolução e encerramento da liquidação foram aprovadas no dia 30 de Dezembro de 1998 e registada no dia 23 de Março de 1999 - al. G;
8. O capital social de D, L.da, era de 420.000$00, pertencendo uma quota de 140.000$00 ao sócio C e outra de 280.000$00 ao sócio B - al. H;
9. A sociedade D, L.da tinha por objecto a construção e comercialização de bens imobiliários; - al. I;
10. À data da dissolução daquela sociedade, esta já tinha sido citada para a acção referida em 3) - resposta ao quesito 1.º;
11. À data da dissolução de D, L.da não havia bens a partilhar, sendo certo que a mesma já não desenvolvia qualquer actividade desde finais de 1997 - resposta aos quesitos 3.º e 4.º;
12. A A. dedica-se ao fabrico de blocos de Betão - resposta ao quesito 8.º;
13. O R. B era sócio gerente da sociedade E, L.da - resposta ao quesito 9.º.
O direito
Nas suas alegações (1), a recorrente começa por suscitar a este Supremo Tribunal que use os poderes que o art. 729.º, 3 do CPC confere, determinando a ampliação da matéria de facto.
Mas sem razão.
Diz a lei 2) que "fora dos casos previstas na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito".
Por outro lado, o art. 712.º, 6 do CPC (3) refere que "das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça".
Só, portanto, em casos muito excepcionais é que este Supremo Tribunal pode sindicar a matéria de facto dada como provada pela Relação: são os casos previstos no art. 722.º, 2 do CPC, por remissão do art. 729.º, 2 do mesmo Diploma Legal, de ter havido "ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova".
Assim, o STJ apenas conhece da matéria de facto em dois casos: quando o tribunal da Relação tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência (4) ou quando tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico.(5)
No caso dos autos, nem uma coisa nem outra se verifica.
Pretende a recorrente que se dê como provado, com base na certidão do registo predial por si junta que a sociedade dissolvida era, à data da dissolução, proprietária de um prédio que os RR. venderam a terceiros, assim frustrando o direito de crédito da recorrente.
Ora, por um lado, foi a recorrente que, ao intentar a acção, lhe configurou o seu objecto: definiu a pretensão dirigida ao tribunal, bem como a respectiva causa de pedir.
E nela não vemos que tenha alegado que a sociedade dissolvida era proprietária de um prédio e que os RR. o venderam antes da dissolução para frustrar o seu crédito.
E, como é sabido, era à A. que competia "expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção" (6) não bastando que num voto de vencido se tenha dito, contra o alegado pela A. que se devia averiguar se a "sociedade vendeu várias parcelas que construiu em terreno próprio" e que tenha perguntado "que é feito do respectivo dinheiro? ".
No processo civil há regras e, dentre elas avulta para o A. o ónus de definir a sua pretensão e de a fundamentar com os devidos factos.
Os documentos juntos apenas servem para prova dos factos alegados, como flui do art. 523.º, 1 do CPC, ao se referir a documentos "destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção ou da defesa".
Mas mesmo que houvesse factos alegados, nunca a certidão em causa provaria por si só que o "dinheiro proveniente das vendas" (7) foi partilhado pelos RR. ou que a lei exigia para provar tal facto essa certidão.
Restaria, pois, ao tribunal a liberdade de julgamento, de acordo com o princípio da "prova livre" consagrado no art. 655.º do CPC para apreciar tais factos.
De referir ainda que, a haver deficiência, obscuridade ou contradição das respostas aos quesitos, o seu conhecimento se situaria sempre no âmbito da fixação da matéria de facto, operação alheia aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal. (8)
Por isso, a matéria de facto dada como provada pela Relação é, de todo, imodificável, improcedendo as 1.ªs cinco conclusões.
Quando à questão de fundo, também carece de razão a recorrente.
Senão vejamos.
Perante a tutela jurisdicional pretendida, cabia à A. alegar factos concretos em que se baseia o direito a acautelar, já que, vigorando entre nós a teoria da substanciação, a lei impõe aos AA. a indicação do pedido e da causa de pedir, ou seja, o facto ou factos concretos em que se baseia o direito que pretendem acautelar. (9)
Conforme se extrai da P.I., a recorrente pediu a condenação dos RR. a pagarem-lhe as quantias acima mencionadas, que a sociedade liquidada por eles lhe devia, já que os "liquidatários (sócios) não prestaram a caução a que alude o art. 154.º, 3 do CSC" (10)
Invoca também a responsabilidade pessoal e solidária dos RR. para com o passivo não acautelado, nos termos do art. 163.º, 1 do mesmo Diploma Legal.
Finalmente, diz que a responsabilidade dos RR. não está excluída pelo facto de se considerar extinta a sociedade, nos termo do art. 160.º, 2 do CSC.
Ora, tal como foi gizada a acção, as instâncias consideraram, e bem, que tais normativos apenas seriam aplicáveis se tivesse havido partilha de bens pelos sócios, o que não aconteceu porque vem demonstrado que à data da dissolução não havia bens e a sociedade já não desenvolvia qualquer actividade desde finais de 1997 (11) .
O entendimento das instâncias insere-se no contexto da jurisprudência, como se vê, por exemplo, do Ac. da RL, de 18.10.00 (12) em que se decidiu que "não tendo havido partilha de património da sociedade, não se mostrar ter existido prejuízo ..., faltando um requisito essencial para que os liquidatários ... pudessem ser responsabilizados pessoalmente."
Vem, contudo, a recorrente invocar, agora e na Relação, o disposto no art. 78.º, 1 do CSC para defender que os RR. são responsáveis pela peticionada indemnização.
Mais uma vez sem razão.
Dispõe o citado art. 78.º, 1:
"Os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes, o património social se tome insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos".
Este normativo reporta-se a uma acção pessoal e directa para o exercício de um direito próprio do credor 13), independente da responsabilidade para com a sociedade.
"Tem natureza delitual ou extracontratual, que não obrigacional ou contratual, pois não existe, anteriormente ao acto ilicito, qualquer direito de crédito do credor social perante o administrador. Existe apenas um interesse juridicamente protegido a que corresponde um dever de carácter geral." (14)
"Não se trata .... (15) saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir a obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes de saber se o administrador tem ou não, perante certo credor social, o dever de não afectar o património social em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais"
"O administrador constitui-se no dever de indemnizar os credores sociais sempre que pratique um acto danoso, ilícito e culposo, com os elementos específicos indicados no n.º1 (16)
A responsabilidade só surge se o dano atingir o património social e o devedor o tornar insuficiente para a satisfação dos créditos dos credores da sociedade. Há-de ser um dano patrimonial para a sociedade"
E depende dos seguintes requisitos cumulativos:
. que o facto do gerente constitua uma inobservância culposa de disposições legais destinadas à protecção dos interesses dos credores sociais;
. que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos;
. que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano. (17)
No caso dos autos, a norma violada que protegia os interesses dos credores é o art. 6.º do CPEREF (18), já que os RR. deveriam ter apresentado à falência a sociedade de que eram sócios e não dissolvê-la.
Como acima vimos, o pedido formulado teve como suporte apenas a circunstância de os RR. não terem prestado a caução a que alude o art. 154.º, 2 do CSC que, como se viu, não tem aplicação no caso concreto por os RR. não terem partilhado bens da sociedade dissolvida.
E mesmo que a acção tivesse por fundamento a invocada omissão de apresentarem à falência a sociedade dissolvida, não vêm alegados nem demonstrados os pressupostos da responsabilidade aquiliana de que depende a responsabilização dos RR. nos termos do art. 483.º, 1 do CC, designadamente, factos donde resulte que a não apresentação à falência trouxe danos à A e que ocorre nexo causal entre os danos e a omissão dos RR.
Como se doutrina no ac. da RP de 30.4.98 (19), "a responsabilidade pessoal daqueles sócios (20) para com os credores sociais só poderá ocorrer se estes alegarem e provarem que naquela declaração de falta de bens no património da sociedade dissolvida não é verdadeira, designadamente por existirem bens partilháveis à data da dissolução".
Finalmente, diga-se que a questão do abuso de direito suscitado apenas nas conclusões - que, por isso, não emerge das respectivas alegações - é questão nova; sendo embora o abuso de direito questão oficiosa, sempre se dirá que os factos em que a recorrente se baseia para fundamentar o abuso de direito se não verificam no caso concreto.
Por tudo quanto deixa dito, improcedem também as demais conclusões não merecendo provimento o recurso.
Decisão
Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 17 de Novembro de 2005
Pedindo
A sua condenação a pagarem-lhe a quantia de 1.091.496$00, a título de capital, 584.194$00, de juros vencidos até 23.4.99 e 127.341$00 de juros vencidos desde esta última data até ao presente, tudo no montante de 1.803.3031$00, de fornecimentos que fez à sociedade D, L.da, por os RR. sócios liquidatários desta, não terem prestado a caução a que alude o art. 154.º, 3 do CSC, na data da escritura de dissolução.
Os RR. contestaram separadamente, por excepção e por impugnação, deduzindo pedido reconvencional por fornecimento de areão, pedindo a respectiva condenação da A.
A A. respondeu.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, julgando improcedente quer a acção quer a reconvenção.
Inconformada, a A. interpôs, sem êxito, recurso de apelação.
Novamente inconformada, interpôs recurso de revista, terminando as alegações com as seguintes
Conclusões
1.ª O Supremo Tribunal de Justiça tem o poder de mandar ampliar a matéria de facto, em ordem a constituir base sólida para a boa decisão da causa, nos termos do artigo 729.º 3 do C PC.
2.ª In casu é justificado que o faça, na medida em que a recorrente intentou a presente acção, pedindo a condenação dos recorridos, alegando inter alia que os mesmos, nas suas funções de gerentes/liquidatários da sociedade, agiram com dolo, posto que, previamente ao acto de dissolução, alienaram o património da sociedade, frustrando, assim, o direito de crédito da recorrente.
3.ª Entenderam as instâncias que para a efectivação da responsabilidade dos recorridos, necessário se tomaria que, posteriormente à dissolução, tivesse havido partilha de bens, entre os sócios, o que não era o caso, já que no ano da dissolução a sociedade não exercia actividade.
4.ª Porém, não tiveram em conta a força probatória de certidão do registo predial junta pela recorrente e na qual consta que a sociedade dissolvida era, meses antes à data da dissolução, proprietária de um prédio no qual construíram - com dinheiro dos credores, incluindo a recorrente - diversas fracções que venderam a terceiros, não se sabendo, porém, o destino final do dinheiro.
5.ª Mas, face a todo o enquadramento fáctico da situação, é de extrair, nos termos do artigo 351.º do CCIV, a presunção judicial de que os sócios gerentes (recorridos) partilharam o dinheiro proveniente das vendas, sabido que o negócio imobiliário na Madeira é uma actividade altamente lucrativa.
6.ª Acresce que, nos termos do artigo 78.º, 1 do CSC, os recorridos respondem solidária e ilimitadamente perante a recorrente, já que foi por sua culpa que o património da sociedade se tomou insuficiente (inexistente), o que resulta do facto de todo o património imobiliário ter sido vendido pelos recorridos, sem que fosse efectuado o pagamento do crédito da recorrente e doutros - facto que os recorridos, aliás, não colocam em causa.
7.ª Para a imputação da responsabilidade que ora se efectiva, é indiferente o momento em que os recorridos procederam à partilha dos bens (fracções de um imóvel), pois o que importa é que os direitos dos credores saiam prejudicados pelos actos dos responsáveis (nexo de causalidade entre o dano e o acto), seja, anterior, simultâneo ou posterior à formalidade que é a escritura da dissolução. Aliás,
8.ª Se fosse verdade que a sociedade perdeu o seu activo na actividade, então os recorridos, enquanto responsáveis pela sociedade, tinham o dever de apresentá-la à falência, uma vez que se dava uma superioridade do passivo sobre o activo liquido, nos termos do artigo 6.º do CPEREF .
9.ª O dolo dos recorridos é perceptível quando se pondera que, enquanto liquidatários, não acautelaram - o que, aliás, nunca pretenderam - os direitos dos credores, violando, consequentemente os deveres consignados nos artigos 149.º n.º 1 e 2, 153.º n.º 2, 154.º, n.º 1 e 155.º n.º1 todos do CSC, o que se afere quando, sabendo da existência das dívidas, declararam, perante o notário, não haver bens a partilhar e que se alguma dívida fiscal houvesse por eles seria assumida.
10.º A dissolução, tal como foi efectuada, sem pagamento aos credores, visou apenas - e tão só - evitar que estes lançassem mão dos meios de ressarcimento do seu crédito, o que, além do mais, configura um verdadeiro e clamoroso abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do CCIV.
11.º Julgamos, sábios juízes conselheiros, que a questão é, essencialmente, de direito, e que, por isso, haverão de aplicá-lo de forma a que se não permitam situações de autêntica fraude à lei como é, nitidamente, o caso sub judice.
12.º Por todo o exposto a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 351.º do CCIV , 78.º, 80.º, 149.º n.º 1 e 2, 153.º n.º 2, 154.º, n.º1 e 155.º n.º1 todos do CSC, 6.º do CPEREF e 334.º do CCIV , devendo estas normas serem interpretadas e aplicadas no sentido expresso nestas conclusões.
Termina, pedindo se conceda a revista e se revogue a dupla conforme decisão das instâncias.
Não foram oferecidas contra alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Matéria de facto provada:
1. A A. dedica-se ao comércio de materiais de construção civil, sendo que, no âmbito dessa actividade, forneceu à sociedade D, Ld.ª, da qual os RR. são os únicos sócios, diversos materiais de construção, cujo montante ascende a 1.091.496$00 - Alínea A);
2. Como aquela sociedade não pagou nos prazos convencionados, a A. intentou contra ela a respectiva acção de cobrança - Alínea B);
3. Por sentença proferida a 23.04.1999, pelo 2° Juízo Cível da comarca do Funchal, foi julgada procedente a acção e consequentemente condenada a sociedade D, Ld.ª a pagar à aqui A. a quantia de 1.091.496$00, a que acresceram juros até àquela data, no montante de 584.194$00 -Alínea C);
4. Foi publicado no Diário de Notícias do Funchal, edição de 22 de Abril de 1999, o anúncio de liquidação daquela sociedade - Alínea D);
5. A escritura de dissolução da sociedade D, Ld.ª é datada de 30 de Dezembro de 1998 e nela consta que:
. B e Pedro Nunes Silva são os únicos sócios da referida sociedade;
. Que o capital social, integralmente realizado, é de quatrocentos e vinte mil escudos;
. Que deliberaram e formalizaram aqueles sócios a dissolução da sociedade, acto de que resulta a extinção da mesma, porquanto nenhuns bens há a liquidar ou partilhar, tendo-se perdido o próprio capital na actividade social - al. E);
6. Os liquidatários (sócios) não prestaram a caução a que alude o art. 154.º, 3 do CSC - al. F);
7. A dissolução e encerramento da liquidação foram aprovadas no dia 30 de Dezembro de 1998 e registada no dia 23 de Março de 1999 - al. G;
8. O capital social de D, L.da, era de 420.000$00, pertencendo uma quota de 140.000$00 ao sócio C e outra de 280.000$00 ao sócio B - al. H;
9. A sociedade D, L.da tinha por objecto a construção e comercialização de bens imobiliários; - al. I;
10. À data da dissolução daquela sociedade, esta já tinha sido citada para a acção referida em 3) - resposta ao quesito 1.º;
11. À data da dissolução de D, L.da não havia bens a partilhar, sendo certo que a mesma já não desenvolvia qualquer actividade desde finais de 1997 - resposta aos quesitos 3.º e 4.º;
12. A A. dedica-se ao fabrico de blocos de Betão - resposta ao quesito 8.º;
13. O R. B era sócio gerente da sociedade E, L.da - resposta ao quesito 9.º.
O direito
Nas suas alegações (1), a recorrente começa por suscitar a este Supremo Tribunal que use os poderes que o art. 729.º, 3 do CPC confere, determinando a ampliação da matéria de facto.
Mas sem razão.
Diz a lei 2) que "fora dos casos previstas na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito".
Por outro lado, o art. 712.º, 6 do CPC (3) refere que "das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça".
Só, portanto, em casos muito excepcionais é que este Supremo Tribunal pode sindicar a matéria de facto dada como provada pela Relação: são os casos previstos no art. 722.º, 2 do CPC, por remissão do art. 729.º, 2 do mesmo Diploma Legal, de ter havido "ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova".
Assim, o STJ apenas conhece da matéria de facto em dois casos: quando o tribunal da Relação tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência (4) ou quando tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico.(5)
No caso dos autos, nem uma coisa nem outra se verifica.
Pretende a recorrente que se dê como provado, com base na certidão do registo predial por si junta que a sociedade dissolvida era, à data da dissolução, proprietária de um prédio que os RR. venderam a terceiros, assim frustrando o direito de crédito da recorrente.
Ora, por um lado, foi a recorrente que, ao intentar a acção, lhe configurou o seu objecto: definiu a pretensão dirigida ao tribunal, bem como a respectiva causa de pedir.
E nela não vemos que tenha alegado que a sociedade dissolvida era proprietária de um prédio e que os RR. o venderam antes da dissolução para frustrar o seu crédito.
E, como é sabido, era à A. que competia "expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção" (6) não bastando que num voto de vencido se tenha dito, contra o alegado pela A. que se devia averiguar se a "sociedade vendeu várias parcelas que construiu em terreno próprio" e que tenha perguntado "que é feito do respectivo dinheiro? ".
No processo civil há regras e, dentre elas avulta para o A. o ónus de definir a sua pretensão e de a fundamentar com os devidos factos.
Os documentos juntos apenas servem para prova dos factos alegados, como flui do art. 523.º, 1 do CPC, ao se referir a documentos "destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção ou da defesa".
Mas mesmo que houvesse factos alegados, nunca a certidão em causa provaria por si só que o "dinheiro proveniente das vendas" (7) foi partilhado pelos RR. ou que a lei exigia para provar tal facto essa certidão.
Restaria, pois, ao tribunal a liberdade de julgamento, de acordo com o princípio da "prova livre" consagrado no art. 655.º do CPC para apreciar tais factos.
De referir ainda que, a haver deficiência, obscuridade ou contradição das respostas aos quesitos, o seu conhecimento se situaria sempre no âmbito da fixação da matéria de facto, operação alheia aos poderes de cognição deste Supremo Tribunal. (8)
Por isso, a matéria de facto dada como provada pela Relação é, de todo, imodificável, improcedendo as 1.ªs cinco conclusões.
Quando à questão de fundo, também carece de razão a recorrente.
Senão vejamos.
Perante a tutela jurisdicional pretendida, cabia à A. alegar factos concretos em que se baseia o direito a acautelar, já que, vigorando entre nós a teoria da substanciação, a lei impõe aos AA. a indicação do pedido e da causa de pedir, ou seja, o facto ou factos concretos em que se baseia o direito que pretendem acautelar. (9)
Conforme se extrai da P.I., a recorrente pediu a condenação dos RR. a pagarem-lhe as quantias acima mencionadas, que a sociedade liquidada por eles lhe devia, já que os "liquidatários (sócios) não prestaram a caução a que alude o art. 154.º, 3 do CSC" (10)
Invoca também a responsabilidade pessoal e solidária dos RR. para com o passivo não acautelado, nos termos do art. 163.º, 1 do mesmo Diploma Legal.
Finalmente, diz que a responsabilidade dos RR. não está excluída pelo facto de se considerar extinta a sociedade, nos termo do art. 160.º, 2 do CSC.
Ora, tal como foi gizada a acção, as instâncias consideraram, e bem, que tais normativos apenas seriam aplicáveis se tivesse havido partilha de bens pelos sócios, o que não aconteceu porque vem demonstrado que à data da dissolução não havia bens e a sociedade já não desenvolvia qualquer actividade desde finais de 1997 (11) .
O entendimento das instâncias insere-se no contexto da jurisprudência, como se vê, por exemplo, do Ac. da RL, de 18.10.00 (12) em que se decidiu que "não tendo havido partilha de património da sociedade, não se mostrar ter existido prejuízo ..., faltando um requisito essencial para que os liquidatários ... pudessem ser responsabilizados pessoalmente."
Vem, contudo, a recorrente invocar, agora e na Relação, o disposto no art. 78.º, 1 do CSC para defender que os RR. são responsáveis pela peticionada indemnização.
Mais uma vez sem razão.
Dispõe o citado art. 78.º, 1:
"Os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes, o património social se tome insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos".
Este normativo reporta-se a uma acção pessoal e directa para o exercício de um direito próprio do credor 13), independente da responsabilidade para com a sociedade.
"Tem natureza delitual ou extracontratual, que não obrigacional ou contratual, pois não existe, anteriormente ao acto ilicito, qualquer direito de crédito do credor social perante o administrador. Existe apenas um interesse juridicamente protegido a que corresponde um dever de carácter geral." (14)
"Não se trata .... (15) saber se o administrador tem ou não o dever de cumprir a obrigação da sociedade para com o credor social, mas antes de saber se o administrador tem ou não, perante certo credor social, o dever de não afectar o património social em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais"
"O administrador constitui-se no dever de indemnizar os credores sociais sempre que pratique um acto danoso, ilícito e culposo, com os elementos específicos indicados no n.º1 (16)
A responsabilidade só surge se o dano atingir o património social e o devedor o tornar insuficiente para a satisfação dos créditos dos credores da sociedade. Há-de ser um dano patrimonial para a sociedade"
E depende dos seguintes requisitos cumulativos:
. que o facto do gerente constitua uma inobservância culposa de disposições legais destinadas à protecção dos interesses dos credores sociais;
. que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos;
. que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano. (17)
No caso dos autos, a norma violada que protegia os interesses dos credores é o art. 6.º do CPEREF (18), já que os RR. deveriam ter apresentado à falência a sociedade de que eram sócios e não dissolvê-la.
Como acima vimos, o pedido formulado teve como suporte apenas a circunstância de os RR. não terem prestado a caução a que alude o art. 154.º, 2 do CSC que, como se viu, não tem aplicação no caso concreto por os RR. não terem partilhado bens da sociedade dissolvida.
E mesmo que a acção tivesse por fundamento a invocada omissão de apresentarem à falência a sociedade dissolvida, não vêm alegados nem demonstrados os pressupostos da responsabilidade aquiliana de que depende a responsabilização dos RR. nos termos do art. 483.º, 1 do CC, designadamente, factos donde resulte que a não apresentação à falência trouxe danos à A e que ocorre nexo causal entre os danos e a omissão dos RR.
Como se doutrina no ac. da RP de 30.4.98 (19), "a responsabilidade pessoal daqueles sócios (20) para com os credores sociais só poderá ocorrer se estes alegarem e provarem que naquela declaração de falta de bens no património da sociedade dissolvida não é verdadeira, designadamente por existirem bens partilháveis à data da dissolução".
Finalmente, diga-se que a questão do abuso de direito suscitado apenas nas conclusões - que, por isso, não emerge das respectivas alegações - é questão nova; sendo embora o abuso de direito questão oficiosa, sempre se dirá que os factos em que a recorrente se baseia para fundamentar o abuso de direito se não verificam no caso concreto.
Por tudo quanto deixa dito, improcedem também as demais conclusões não merecendo provimento o recurso.
Decisão
Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 17 de Novembro de 2005
Custódio Montes
Neves Ribeiro
Araújo Barros
(1) Que circunscrevem o âmbito do recurso - art.s 684.º, 2 e 690.º, 3 do CPC.
(2) Arts. 26.º da Lei n.º 3/99, de 13.1 e 721.º do CPC.
(3) Redacção do DL 375-A/99, de 20.9.
(4) Por exemplo, se a lei exige como forma de declaração documento autêntico, autenticado ou particular, não pode substituir-se por outro meio de prova ou por documento que não seja de força probatória superior. - Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Proc. Civil, 5.ª ed., pág. 236.
(5) Se, por exemplo, se dá como provado facto contrário ao que consta de documento autêntico - A. e loc. cits.
(6) Art. 467.º, 1, d) do CPC.
(7) Conclusão 5.ª.
(8) Art. 729.º, 2, 1, 1.ª parte, do CPC.
(9) M. de Andrade, Noções Elementares de Proc. Civil, 1963, pág. 994 e segts.; A. Varela e Outros, Manual de Proc. Civil, págs. 710 e 711; C. Mendes, Manual de Proc. Civil, 1963, pág. 296 e segts.
(10) Código das Sociedades Comerciais.
(11) Ver n.º 11 da matéria de facto, resultante da respostas aos quesitos 3.º e 4.º.
(12) Dgsi.mj.pt doc. n.º Jtrl00028939
(13) Já o n.º 2 do se reporta a uma acção de sub-rogação.
(14) Raúl Ventura e Brito Correia, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes das Sociedades por Quotas, BMJ 195, pág. 66.
(15) Continuam os mesmo AA. na nota 53 na o B. e Loc. cits.
(16) Referiam-se os citados AA. ao n.º 1 do art. 23.º do DL 49381, de 15.1.69, que corresponde na íntegra ao actual art. 78.º, 1 do CSC.
(17) No ac. da RP de 6.7.01, jrtp00030025/itij/net, retirado do CSC anot. Por A. Neto, 2.ª ed., pág. 311, diz-se que a responsabilidade depende dos seguintes requisitos: violação das normas de protecção dos credores, que esta violação seja causa de insuficiência económica e demais pressupostos da responsabilidade aquiliana, com relevo para a ilicitude, culpa e nexo causal"(art. 483.º do CC).
(18) Então em vigor e que dispunha que "logo que falte ao cumprimento de uma das suas obrigações, nas circunstâncias descritas na alínea a) do n.º 1 do artigo 8, deve a empresa dentro dos 60 dias subsequentes, requerer a sua declaração de falência, salvo se, tendo razões bastantes para o fazer, optar pelo requerimento da providência de recuperação adequada".
(19) Citado por A. Neto, na Ob. cit., pág. 309.
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