luni, iunie 27, 2005

Entidades reguladoras, corporativismo fiscal

A multiplicação desordenada de tributos associados à regulação económica, a par da multiplicação desordenada das entidades que os cobram, constitui um dos desenvolvimentos menos saudáveis do nosso sistema fiscal. A Entidade Reguladora da Saúde, criada com o propósito de assegurar a disciplina e acompanhamento dos prestadores de cuidados de saúde, mal entrada em funções vê-se já em conflito com os operadores do sector, obrigados a pagar taxas de supervisão que julgam exorbitantes.
As desventuras da Entidade Reguladora da Saúde teriam o seu quê de pitoresco fossem elas um caso isolado. Facto é que o não são. Com a liberalização progressiva dos mercados, o Estado português recuou progressivamente na sua função de produtor, recolhendo-se às funções mais neutras da regulação externa da economia. Nos últimos anos, muitas são as entidades criadas com este propósito, institutos públicos e autoridades reguladoras, mais e menos independentes, invariavelmente financiados por "taxas de supervisão" cobradas aos operadores económicos que lhe ficam sujeitos.
Porque estas taxas são geralmente concebidas pelas próprias entidades reguladoras, movidas pelo propósito elementar de angariar o máximo de receita pelo expediente mais eficaz, produz-se pouco a pouco uma fiscalidade feita de tributos avulsos, criados nalguns casos com apuro técnico, noutros casos sem ele, em todo o caso sem qualquer matriz comum nem articulação recíproca, cada entidade reguladora cuidando das próprias taxas sem que alguém cuide do efeito combinado que todas elas produzem. É assim que a ERS se financia cobrando taxas sobre o capital social e facturação anual dos estabelecimentos de saúde, o INFARMED cobrando taxas sobre o volume de negócios das farmacêuticas, a CMVM cobrando taxas assentes sobre os activos geridos pelos operadores dos valores mobiliários sujeitos à sua autoridade ou sobre as comissões por eles recebidas. A tolerância com que os nossos tribunais têm encarado estas figuras e o facto de elas se situarem numa área onde raramente chega a opinião pública constituem um estímulo poderoso ao seu alargamento: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, adivinha-se já, encontrará também as suas "taxas de supervisão", igualmente engenhosas com toda a certeza.
Ao lado dos grandes impostos vemos, pois, formar-se uma fiscalidade paralela, semelhante àquela com que em tempos se financiavam em tempos as juntas nacionais e as comissões reguladoras. As "taxas de coordenação económica" que ao longo do Estado Novo se infiltravam no preço do arroz, do bacalhau, da cortiça, do pão, do algodão em rama e de tantos outros bens de consumo, renascem agora como taxas "de supervisão", "de comercialização" ou "de fiscalização", diferentes na terminologia, semelhantes no funcionamento. Começa, assim, a adivinhar-se este resultado paradoxal: o recuo do Estado para as funções mais modernas da regulação, pretendendo entre outras coisas garantir maior eficiência à economia, acaba por recriar o aparelho parafiscal da economia corporativa, entravando o mercado com mil e um tributos de bagatela. E tudo isto com custos de contexto para as empresas que não são despiciendos, desde a adaptação de sistemas informáticos e de facturação à contestação judicial destas taxas em processos custosos e demorados.
Não se pode honestamente pôr em causa que a civilização tenha um preço, que a regulação seja proveitosa aos mercados e que alguém tenha que pagar por ela. Faz sentido que a paguem os operadores de cada sector económico, e que a paguem indirectamente os respectivos clientes, mas os tributos públicos que se criem para o efeito têm necessariamente que ter cabeça, tronco e membros. Cabeça, sobretudo. Os tributos cobrados para financiar a regulação dos mercados não podem constituir impostos alternativos sobre os rendimentos ou sobre o volume de negócios, devem assentar nos custos inerentes à actividade das reguladoras sem ultrapassar o que é necessário à respectiva cobertura. E os custos dessa actividade e das diferentes prestações em que ela se desdobra devem ser públicos e acessíveis aos operadores que lhes estão sujeitos, para que estes se possam defender com eficácia.
Existem muitos vícios no nosso sistema fiscal que se não podem resolver por decreto. Este, porém, é um daqueles raros casos em que o decreto pode bastar. Talvez seja chegado o tempo de pôr travão ao experimentalismo de institutos públicos e entidades reguladoras e de estabelecer um enquadramento legal para os tributos parafiscais que os alimentam, subordinando-os a regras comuns e princípios ordenadores claros, acolhendo de modo inequívoco e atempado as orientações da jurisprudência comunitária em vez de lhes tentar resistir até à última hora. Para regular a economia não é com certeza necessário desregular o sistema fiscal. (Sérgio Vasques in Público, suplemento Economia, 27 de Junho de 2005)

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