Processo: 05A1086
N.º Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: LIVRANÇA / LETRA EM BRANCO / PACTO DE PREENCHIMENTO / RELAÇÕES IMEDIATAS
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 31-1-01, por apenso aos autos de execução ordinária em que é exequente Caixa A, e executados B e mulher, C, vieram estes deduzir os presentes embargos de executado contra a referida A, visando a extinção da execução.
Para tanto, alegaram, resumidamente, o seguinte:
Inexiste título executivo, uma vez que as livranças dadas à execução não são documentos que importem a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária, por terem sido por eles assinadas e entregues em branco à exequente, que as preencheu em momento posterior, sem que existisse pacto de preenchimento.
Não é determinável o montante da obrigação exequenda em face dos documentos juntos como título executivo, dado ter havido pagamentos parciais.
Mesmo que se considere que existe título executivo, este não se harmoniza com o pedido formulado, porquanto é inferior à soma das importâncias das livranças em execução.
As livranças não são título executivo, visto que se destinam apenas a garantir os empréstimos concedidos pela exequente aos executados.
A dívida dos embargantes à embargada não decorre das livranças dadas à execução, mas de outros títulos.
Por decisão de fls 24 foram rejeitados os embargos da embargante mulher, com fundamento na sua extemporaneidade, e foram recebidos os embargos do embargante marido.
A embargada Caixa A contestou, concluindo pela improcedência dos embargos.
Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes.
Apelou o embargante, mas sem êxito, pois a Relação de Coimbra, através do seu Acordão de 9-11-04, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformado, o embargante recorreu de revista, alegando abundantemente e em cujas extensas conclusões suscita três questões:
1 - A sentença é nula, por falta de fundamentação, em virtude de não ter indicado, no mínimo, os princípios jurídicos em que se baseou.
2 - As livranças dadas à execução foram preenchidas abusivamente.
3 - As livranças exequendas carecem de força executiva.
4 - Por isso, o Acordão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que julgue procedentes os embargos ou, se assim não for entendido, a sentença (e o Acordão) deve ser julgada nula, por falta de fundamentação.
A embargada contra-alegou em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir:
A Relação considerou provados os factos seguintes:
1 - A exequente -embargada é possuidora de cinquenta e cinco livranças, sacadas por si e subscritas e assinadas pelo embargante e sua mulher C, todas com vencimento em 1-7-2000, que servem de título à execução, dando-se aqui por integralmente reproduzido o teor das livranças constantes de fls 13 a 67 dos autos de execução.
2 - A embargante, no âmbito do seu principal objecto de exercício de operações A a favor dos seus associados, e por proposta dos executados, ora embargante e sua mulher, concedeu-lhes vários financiamentos, entregando estes à embargada várias livranças para garantia desses financiamentos.
3 - O embargante e sua mulher assinaram e entregaram em branco, à embargada, as livranças referidas no anterior nº1.
4 - As livranças foram preenchidas pela embargada, apondo nelas o valor constante da respectiva proposta de crédito e a data do último acordo, relativo ao vencimento, antes de serem dadas à execução.
5 - As livranças dadas à execução respeitavam a financiamentos após formalização das propostas de crédito, financiamentos que tinham por base letras ou cheques pré-datados, entregues ao embargante por clientes seus, e que este entregava posteriormente à embargada.
6 - A cada uma das livranças referidas no nº1, conforme consta do rosto das mesmas, corresponde uma das propostas de crédito juntas de fls 29 a 83.
7 - As importâncias inscritas em cada uma das livranças correspondem ao montante utilizado nas respectivas propostas de crédito.
8 - As livranças foram preenchidas de acordo com as propostas de crédito e de acordo com aquilo que o embargante contratou com a embargada.
9 - A data do vencimento das livranças foi sucessivamente alterada por pedidos de prorrogação dos planos de pagamento, feitos pelo embargante à embargada e que esta autorizou.
10 - O embargante, alegando imensas dificuldades financeiras, para além do referido no nº9, solicitou ainda que o vencimento fosse todo na mesma data, o que a Direcção da embargada autorizou.
11 - Em 26-4-00, depois de ter tido uma reunião nas instalações da embargada, o embargante solicitou uma prorrogação do débito até 30-6-2000, que foi autorizado, tendo por isso a data do vencimento das livranças o dia 1-7-00, de acordo com o solicitado pelo embargante.
Vejamos, agora, cada uma das questões postas nas conclusões da revista:
1.
Nulidade da sentença, por falta de fundamentação:
A sentença é nula, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - art. 668, nº1, al. b) do C.P.C.
O recorrente entende que existe nulidade, por a sentença da 1ª instância não indicar as normas jurídicas em que se baseou, nem apontar, no mínimo, os princípios jurídicos em que se apoiou.
Esta questão já foi suscitada perante a Relação, que decidiu no sentido da inexistência da invocada nulidade.
E com razão.
Para que a sentença careça de fundamentação, "não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 687).
Relativamente aos fundamentos de direito, dois pontos importa salientar, como acrescentam os mesmos autores (obra e local citados):
"Por um lado, o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes; a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador.
Por outro lado, não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia ".
Alberto dos Reis ( Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) também ensina:
"Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada.
O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade ".
Consequentemente, só ocorre nulidade da sentença, por falta de fundamentação, quando esta é absoluta, como também é entendimento pacífico da jurisprudência.
Ora, na sentença, enumeram-se os factos considerados provados, que suportam a decisão.
Na sua fundamentação jurídica, indicam-se os fundamentos dos embargos de que se impunha conhecer: inexistência de pacto de preenchimento; falta de força executiva das livranças, por se destinarem a garantir empréstimos concedidos pela embargada; proveniência das dívidas de outros títulos que não as livranças.
Todos esses fundamentos foram rejeitados: o primeiro, por se ter provado existir pacto de preenchimento; o segundo, com a argumentação de que o facto das livranças garantirem empréstimos não colide com a força executiva desses títulos de crédito;o terceiro, com a distinção que se deve estabelecer entre a obrigação cartular e a obrigação subjacente ou fundamental e a alusão à característica da abstracção das livranças, ou seja, ao regime cambiário de que a obrigação da livrança é independente da "causa debendi".
Embora não tenham sido expressamente indicados os preceitos legais que sustentam a decisão e a fundamentação jurídica da sentença não seja modelar, o certo é que estão nela indicados, ainda que de forma imprecisa, os princípios e as regras que sustentam a decisão proferida.
Assim, não obstante a fundamentação da sentença da 1ª instância se poder considerar ser incompleta , não se verifica falta absoluta de fundamentação,
De resto, a fundamentação foi melhorada e ampliada no Acordão recorrido.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
2.
Preenchimento abusivo das livranças:
Também aqui falece razão ao recorrente.
Preceitua o art. 77 da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, que são aplicáveis às livranças as disposições relativas às letras em branco ( o art. 10º fala de letra incompleta ).
Por isso, é legalmente admissível a livrança em branco.
A livrança em branco pode definir-se como sendo aquela a que falta algum dos requisitos indicados no art. 75 da Lei Uniforme, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária (Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre letras e livranças, 7ª ed, págs. 78 e 79).
O preenchimento de uma livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos normalmente resultantes das livranças, faz-se de harmonia com o chamado contrato de preenchimento.
O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação dos juros , etc.
Tal contrato pode ser expresso ou tácito.
Ora, resulta dos factos provados (designadamente, do que consta dos nºs 4, 8, 9, 10 e 11 do elenco desses mesmos factos provados), que houve contrato de preenchimento e que as livranças foram preenchidas em conformidade com o acordado nesse pacto, nomeadamente, quanto à respectiva data do vencimento de 1-7-00, que foi aposta em cada uma delas.
O contrato de preenchimento das livranças e os contratos de empréstimo, cujo pagamento as livranças se destinaram a garantir, são realidades diversas.
A prova do contrato de empréstimo não se confunde com a prova do contrato de preenchimento das livranças.
São contratos distintos, podendo a prova do contrato de preenchimento dos títulos ser feita por qualquer meio, incluindo a testemunhal.
Não pode, pois, o recorrente sindicar a validade do pacto de preenchimento e das respostas aos quesitos a que se reportam os nºs 4, 8, 9, 10 e 11 do elenco dos factos provados.
Face à factualidade apurada, constata-se que entre o embargante e a embargada se estabeleceram dois vínculos obrigacionais: um deles, o do embargante pagar o valor dos empréstimos concedidos pela embargada; e outro, o de pagar as livranças que aceitou, em conformidade com o respectivo acordo de preenchimento.
Cada um desses vínculos obrigacionais tem o seu regime próprio e só, quando pelo cumprimento de um deles, estiver satisfeito o interesse do credor, ficará extinto o outro ( Ac. S.T.J. de 21-1-69, Bol. 183-269).
Não se verificou, pois, o invocado preenchimento abusivo dos títulos.
3.
Força executiva das livranças:
As ajuizadas livranças são título executivo, nos termos do art. 46, al. c) do C.P.C., pelas razões já suficientemente enunciadas no Acordão recorrido, para que se remete, neste domínio, e que seria ocioso aqui repetir.
A circunstância das livranças terem sido subscritas pelo embargante para garantia de financiamentos concedidos pela embargada, não lhes retira força executiva.
Geralmente, quem assina uma letra ou uma livrança e assume a respectiva obrigação cambiária, fá-lo porque já está vinculado por efeito duma relação jurídica anterior.
Esta é a relação jurídica subjacente ou causal, também chamada contrato originário ou relação jurídica fundamental, que pode assumir várias figuras jurídicas, tais como: uma compra e venda, um contrato de mútuo, uma abertura de crédito ou um saldo de conta corrente.
No entanto, tudo se passa como se tal obrigação não existisse, ou seja, como se a obrigação cambiária fosse uma obrigação sem causa.
É que, para as letras e livranças, vigora um regime especial, que reflecte a preocupação de defender os interesses dos terceiros de boa fé, imposta pela necessidade de facilitar a circulação dos títulos de crédito (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, vol. III, págs. 38 e segs, Abel Pereira Delgado, Obra citada, pág. 107).
Esta especialidade pode sintetizar-se nos seguinte princípios:
a) - incorporação da obrigação no título ( a obrigação e o título constituem uma unidade) ;
b) - literalidade da obrigação (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspecção do título) ;
c) - abstracção da obrigação (a letra é independente da "causa debendi";
d) - Independência recíproca da vária obrigações incorporadas no título (a nulidade de uma das obrigações que a lei incorpora não se comunica às demais);
e) - autonomia do direito do portador (o portador é considerado credor originário).
Aqui e agora, importa sobremaneira frisar que a obrigação cambiária é uma obrigação abstracta e, portanto, independente de qualquer "causa debendi", válida por si e pelas estipulações expressas nas livranças, ficando o embargante vinculado ao pagamento dos seus respectivos montantes porque aceitou esses títulos, em conformidade com o pacto de preenchimento, apondo neles a sua assinatura.
Encontrando-se as livranças no domínio das relações imediatas, a exequente-embargada pode invocar, perante o executado-embargante, o acordo de preenchimento que fixou a dada do vencimento de todas as livranças em 1-7- 2000.
Termos em que negam a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 3 de Maio de 2005
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão