"Muitas das movimentações governamentais provocadas pelo anúncio das OPA do sector energético têm de passar pelo crivo das regras europeias do mercado interno e da concorrência. A autoridade da Comissão e a sua imparcialidade estão em causa. Ou Barroso consegue enfrentar os 'grandes' - Paris ou Berlim, Roma ou Madrid - com o mesmo rigor e a mesma determinação com que já enfrentou os 'pequenos' em situações similares, ou arrisca-se ao descrédito e à irrelevância
1. Há duas maneiras de olhar para o surto de nacionalismo económico que parece ter atacado alguns países europeus - os grandes, sobretudo -, na sequência de uma vaga de anúncios de ofertas públicas de aquisição (OPA) transfronteiriças no sector energético. Uma, que se trata de um ataque ao mais sólido pilar da integração europeia, o seu mercado interno, que não augura nada de bom. Outra, mais optimista, que é apenas uma reacção negativa e, talvez, passageira contra os efectivos avanços do mercado único, que tornaram esta vaga de fusões e aquisições possível e inevitável. Nesta versão mais suave, é a antecipação da abertura total do mercado da energia europeu, prevista para Julho do próximo ano, que ajuda a explicar o que se está a passar no sector.
As duas leituras são verdadeiras e são complementares. Nenhuma delas anula a preocupação manifestada por muitos analistas e pela Comissão Europeia sobre o significado político desta vaga de 'patriotismo económico', como lhe chama sem qualquer disfarce o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin, mas que outros governos europeus praticam com o mesmo à-vontade e apenas um pouco mais de hipocrisia.
Estaremos perante um novo e ameaçador retrocesso da integração europeia? Estamos, pelo menos, perante mais um sintoma preocupante da crise em que mergulhou o projecto de construção da Europa.
2. O antigo comissário da Concorrência, o italiano Mario Monti, escrevia há dias no Financial Times: 'Antes de sucumbirem à tentação, [os governos europeus] deveriam reflectir sobre que 'pátria' estão a servir com o seu patriotismo económico. Em muitos casos, trata-se da pátria de alguns patrões, não da comunidade empresarial em geral e, muito menos, dos consumidores e do conjunto da economia.' Monti não hesitava em dizer que é o próprio mercado único, 'um pilar fundamental da União Europeia desde a sua fundação', que começa a estar em perigo. E alertava para as consequências que isso pode vir a ter no próprio euro, que exige mais e não menos integração dos mercados.
Alguns dias depois e no mesmo jornal londrino, Dominique Moisi, investigador do Instituto Francês de Relações Internacionais, ia um pouco mais longe. 'Como podemos invocar a necessidade de criar uma 'Europa da energia' - para demonstrar aos cidadãos europeus que precisam mesmo da Europa num mundo caracterizado pela imprevisibilidade - e, ao mesmo tempo, fazer soar as trombetas do patriotismo quando algumas das nossas 'jóias de família' estão em vias de ser adquiridas por outros, numa normal lógica capitalista?' Alertando para o risco do 'patriotismo económico' vir a 'desfazer' a Europa, Moisi deixava outra inquietante pergunta: 'Pode o ideal europeu vir a sofrer o mesmo destino da ideologia comunista na União Soviética, passando de ideal a dogma e de dogma à irrelevância?'
A questão é pertinente, se somarmos aos riscos apontados por Monti para o mercado único e o euro o contexto político europeu e internacional.
3. O que há de mais grave neste ressurgimento do nacionalismo económico é que ele se inscreve num clima generalizado de grande cepticismo sobre o projecto europeu, que não vale a pena negar. As divisões provocadas pela guerra do Iraque deixaram marcas. O alargamento de 2004, mal explicado e mal percebido pelas opiniões púbicas dos 'velhos' Estados-membros, em vez de se transformar num factor de dinamismo e de confiança no projecto europeu, salda-se hoje num clima de desconfiança mútua, ampliando o medo da globalização. O triste destino da Constituição europeia, rejeitada pela França e pela Holanda, acentuou ainda mais este sentimento de desalento e deriva. A agenda de reformas económicas e sociais, lançada em Lisboa há já seis anos para fornecer à Europa os instrumentos que lhe permitiriam enfrentar em conjunto os tremendos desafios da globalização económica, pena em encontrar a adesão necessária para se poder transformar num factor de dinamismo e de confiança.
'Há um ressurgimento do Estado-nação na Europa', diz Elie Cohen, membro do Conselho de Análise Económica, um painel de economistas independentes que aconselha o Governo francês, citado pelo International Herald Tribune. 'Este instinto nacionalista e proteccionista é muito difícil de reconciliar com a ideia de integração europeia'. Cohen acrescenta aquilo que seria óbvio: que, 'num mundo globalizado, só unindo forças as nações europeias podem ter esperança de enfrentar os desafios dos seus novos concorrentes, como a China ou a Índia - ou os novos fornecedores de energia, como a Rússia.' Para concluir: 'A Europa está a ser enfraquecida precisamente no momento em que a sua massa crítica é mais necessária.'
4. Boa parte da capacidade de resposta a este clima de 'desintegração' europeia está nas mãos da Comissão. O seu presidente, Durão Barroso, já se sentiu na obrigação de alertar os governos europeus para este jogo perigoso, apelando ao seu sentido de responsabilidade. A sua tarefa é, todavia, muito mais exigente do que este simples apelo. Muitas das movimentações governamentais provocadas pelo anúncio das OPA do sector energético têm de passar pelo crivo das regras europeias do mercado interno e da concorrência. A autoridade da Comissão e a sua imparcialidade estão em causa. Ou Barroso consegue enfrentar os 'grandes' - Paris ou Berlim, Roma ou Madrid - com o mesmo rigor e a mesma determinação com que já enfrentou os 'pequenos' em situações similares, ou arrisca-se ao descrédito e à irrelevância.
A Comissão é o símbolo e o centro do projecto de integração europeia. A sua constante perda de influência praticamente desde a saída de Jacques Delors, em 1995, mais do que culpa própria, tem sido o reflexo das dificuldades que a Europa vem atravessando para se adaptar a um mundo em profunda mutação. Barroso tem procurado seguir o caminho do pragmatismo, evitando os grandes objectivos políticos para dar prioridade aos pequenos mas irreversíveis passos económicos. A sua filosofa, conforme ele próprio a resumia numa entrevista recente, é que a Europa 'tem agora de ser construída a partir de projectos concretos' que se traduzam 'em resultados concretos' perceptíveis pelos cidadãos europeus.
Tudo isto está certo. Mas um pouco de chama e de visão política vão ser cada vez mais necessários, se a Comissão quer retomar o seu papel de motor da integração europeia, contra as tendências suicidas que parecem avolumar-se sobre os destinos da Europa e dos europeus." (Teresa de Sousa - Público, 07/03/2006)
1. Há duas maneiras de olhar para o surto de nacionalismo económico que parece ter atacado alguns países europeus - os grandes, sobretudo -, na sequência de uma vaga de anúncios de ofertas públicas de aquisição (OPA) transfronteiriças no sector energético. Uma, que se trata de um ataque ao mais sólido pilar da integração europeia, o seu mercado interno, que não augura nada de bom. Outra, mais optimista, que é apenas uma reacção negativa e, talvez, passageira contra os efectivos avanços do mercado único, que tornaram esta vaga de fusões e aquisições possível e inevitável. Nesta versão mais suave, é a antecipação da abertura total do mercado da energia europeu, prevista para Julho do próximo ano, que ajuda a explicar o que se está a passar no sector.
As duas leituras são verdadeiras e são complementares. Nenhuma delas anula a preocupação manifestada por muitos analistas e pela Comissão Europeia sobre o significado político desta vaga de 'patriotismo económico', como lhe chama sem qualquer disfarce o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin, mas que outros governos europeus praticam com o mesmo à-vontade e apenas um pouco mais de hipocrisia.
Estaremos perante um novo e ameaçador retrocesso da integração europeia? Estamos, pelo menos, perante mais um sintoma preocupante da crise em que mergulhou o projecto de construção da Europa.
2. O antigo comissário da Concorrência, o italiano Mario Monti, escrevia há dias no Financial Times: 'Antes de sucumbirem à tentação, [os governos europeus] deveriam reflectir sobre que 'pátria' estão a servir com o seu patriotismo económico. Em muitos casos, trata-se da pátria de alguns patrões, não da comunidade empresarial em geral e, muito menos, dos consumidores e do conjunto da economia.' Monti não hesitava em dizer que é o próprio mercado único, 'um pilar fundamental da União Europeia desde a sua fundação', que começa a estar em perigo. E alertava para as consequências que isso pode vir a ter no próprio euro, que exige mais e não menos integração dos mercados.
Alguns dias depois e no mesmo jornal londrino, Dominique Moisi, investigador do Instituto Francês de Relações Internacionais, ia um pouco mais longe. 'Como podemos invocar a necessidade de criar uma 'Europa da energia' - para demonstrar aos cidadãos europeus que precisam mesmo da Europa num mundo caracterizado pela imprevisibilidade - e, ao mesmo tempo, fazer soar as trombetas do patriotismo quando algumas das nossas 'jóias de família' estão em vias de ser adquiridas por outros, numa normal lógica capitalista?' Alertando para o risco do 'patriotismo económico' vir a 'desfazer' a Europa, Moisi deixava outra inquietante pergunta: 'Pode o ideal europeu vir a sofrer o mesmo destino da ideologia comunista na União Soviética, passando de ideal a dogma e de dogma à irrelevância?'
A questão é pertinente, se somarmos aos riscos apontados por Monti para o mercado único e o euro o contexto político europeu e internacional.
3. O que há de mais grave neste ressurgimento do nacionalismo económico é que ele se inscreve num clima generalizado de grande cepticismo sobre o projecto europeu, que não vale a pena negar. As divisões provocadas pela guerra do Iraque deixaram marcas. O alargamento de 2004, mal explicado e mal percebido pelas opiniões púbicas dos 'velhos' Estados-membros, em vez de se transformar num factor de dinamismo e de confiança no projecto europeu, salda-se hoje num clima de desconfiança mútua, ampliando o medo da globalização. O triste destino da Constituição europeia, rejeitada pela França e pela Holanda, acentuou ainda mais este sentimento de desalento e deriva. A agenda de reformas económicas e sociais, lançada em Lisboa há já seis anos para fornecer à Europa os instrumentos que lhe permitiriam enfrentar em conjunto os tremendos desafios da globalização económica, pena em encontrar a adesão necessária para se poder transformar num factor de dinamismo e de confiança.
'Há um ressurgimento do Estado-nação na Europa', diz Elie Cohen, membro do Conselho de Análise Económica, um painel de economistas independentes que aconselha o Governo francês, citado pelo International Herald Tribune. 'Este instinto nacionalista e proteccionista é muito difícil de reconciliar com a ideia de integração europeia'. Cohen acrescenta aquilo que seria óbvio: que, 'num mundo globalizado, só unindo forças as nações europeias podem ter esperança de enfrentar os desafios dos seus novos concorrentes, como a China ou a Índia - ou os novos fornecedores de energia, como a Rússia.' Para concluir: 'A Europa está a ser enfraquecida precisamente no momento em que a sua massa crítica é mais necessária.'
4. Boa parte da capacidade de resposta a este clima de 'desintegração' europeia está nas mãos da Comissão. O seu presidente, Durão Barroso, já se sentiu na obrigação de alertar os governos europeus para este jogo perigoso, apelando ao seu sentido de responsabilidade. A sua tarefa é, todavia, muito mais exigente do que este simples apelo. Muitas das movimentações governamentais provocadas pelo anúncio das OPA do sector energético têm de passar pelo crivo das regras europeias do mercado interno e da concorrência. A autoridade da Comissão e a sua imparcialidade estão em causa. Ou Barroso consegue enfrentar os 'grandes' - Paris ou Berlim, Roma ou Madrid - com o mesmo rigor e a mesma determinação com que já enfrentou os 'pequenos' em situações similares, ou arrisca-se ao descrédito e à irrelevância.
A Comissão é o símbolo e o centro do projecto de integração europeia. A sua constante perda de influência praticamente desde a saída de Jacques Delors, em 1995, mais do que culpa própria, tem sido o reflexo das dificuldades que a Europa vem atravessando para se adaptar a um mundo em profunda mutação. Barroso tem procurado seguir o caminho do pragmatismo, evitando os grandes objectivos políticos para dar prioridade aos pequenos mas irreversíveis passos económicos. A sua filosofa, conforme ele próprio a resumia numa entrevista recente, é que a Europa 'tem agora de ser construída a partir de projectos concretos' que se traduzam 'em resultados concretos' perceptíveis pelos cidadãos europeus.
Tudo isto está certo. Mas um pouco de chama e de visão política vão ser cada vez mais necessários, se a Comissão quer retomar o seu papel de motor da integração europeia, contra as tendências suicidas que parecem avolumar-se sobre os destinos da Europa e dos europeus." (Teresa de Sousa - Público, 07/03/2006)
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